terça-feira, 18 de abril de 2017

Cachoeira.

    Sandra percorre montanhas e cachoeiras em seus sonhos. Escreve sempre tudo o que vê em seu pequeno caderno. Está sozinha, como sempre esteve. Talvez só agora foi possível notar: As marcas de sangue nos braços podem trazer algum significado dessa constante nebulosidade que foi a sua vida. O seu antigo e único apartamento no centro da cidade agora está muito mais longe do que se imagina. Sandra está perdida dentro de um sonho, dentro de um pesadelo numa madrugada de segunda feira. Quando acorda, espera desesperadamente que as pessoas acreditem nos seus sonhos, pois eles significam muito mais do que qualquer coisa. A sua rotina sempre foi exagerada, eu digo, exaustivamente, dolorosamente e enlouquecidamente exagerada ao ponto de uma cobrança diária ter se transformado numa psicose. Ninguém a perturbava, era apenas individual. Sandra morava sozinha e tinha uma vida resolvida, não era necessário expandir. Mas que expansão era essa? Todo o seu esforço para o entendimento do grande quebra cabeça dentro da sua mente foi em vão. No fim, tudo se transformou em uma incerteza angustiante, sem caminhos e formas.
      Antes de tudo: Todos os pequenos passos não mostram nenhuma luz de fim de túnel. São apenas passos em torno de um mesmo ponto fixo que perpassam a sensação angustiante de não sair do lugar. O giro urbano...A cidade que mantém as suas ruas, o barulho que destrói os ouvidos, os problemas cardíacos e respiratórios, o estado permanente de um hipocondríaco, as buzinas e as irritações de todas as pessoas que circulam pelas ruas, os passos rápidos e paranoicos, sufocantes. Todos mentem, todos se odeiam e todos choram. Tudo isso num movimento síncrono diário, como se hoje fosse exatamente igual a ontem. E  ainda sim, Sandra acredita que amanhã será diferente de hoje. Quando percebeu que tinha acordado com o barulho do despertador, preparou os braços e cortou-se numa veia profunda: Apertou e sentiu o sangue espirrar para todos os lados: Sandra se libertava de uma dor psicológica gerada pela realidade, transformando-a em uma dor física. As gotas vermelhas eram delirantes e o sangue espirrava dos seus braços finos como uma  grande fonte de água. Não queria ter saído do pesadelo, acordar nunca foi bom, pois Sandra era viciada em tudo, menos na realidade.
       Na sua memória:Lembra que as gostas de sangue eram hematomas deixados pelo seu pai, antigamente. Agora Sandra está sozinha, com uma mãe morta e um pai preso. Mas um pai que talvez seria melhor se fosse esquecido. Entretanto, a calmaria de uma vida contemporânea, individualizada e solitária não foi o suficiente para inibir a ação corrosiva dos seus tramas. É manhã, bem cedinho. O sangue escorre pelo chuveiro do apartamento central enquanto o despertador faz um barulho assustador. É apenas o começo do seu dia.